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do Portal UOL * * *
POR RLOPES
26/02/15 17:36
É impressionante a quantidade de lendas urbanas,
preconceito e desinformação que grassa por aí quando o assunto é a maneira como
a Bíblia foi escrita, editada e transformada num cânone, ou seja, num conjunto
(mais ou menos) fechado de livros adotado por muitas religiões como algo dotado
de autoridade religiosa. Mas nada tema, mui gentil leitor — este post abordará (e
desmontará) cinco grandes mitos sobre o tema e, espero, trará alguma luz ao
debate. Vamos a eles?
Mito 1: a Bíblia que temos hoje foi “inventada” no
Concílio de Niceia
Nananinão, dileto leitor. O Primeiro Concílio de
Niceia, realizado no ano 325 d.C. na cidade romana de mesmo nome (localizada na
atual Turquia), foi uma grande reunião de bispos (cerca de 300) convocada pelo
imperador Constantino. Seu principal tema foi a cristologia, ou seja, debates
sobre a exata natureza de Jesus Cristo e sua relação com Deus Pai. O concílio
deu o passo decisivo para definir que Jesus compartilhava da mesma natureza de
Deus e existia desde o princípio dos tempos, não tendo sido “criado” em
qualquer sentido ordinário. A agenda do concílio incluía várias questões
menores, como a data correta da celebração da Páscoa cristã. Mas em NENHUM
momento incluiu discussões sobre os livros que deveriam ou não ser incluídos na
Bíblia. Repito: esse tema simplesmente NÃO foi debatido em Niceia.
Mito puro, portanto.
Mas, se é mito, quando diabos o cânone foi fixado,
afinal? Bem, depende. De maneira geral, pode-se dizer que, no fim do século 4º
d.C., uns 50 anos depois de Niceia, a maioria das igrejas cristãs aceitava mais
ou menos os textos ainda aceitos hoje. Mas alguma variação continuou ocorrendo,
e nenhum grande pronunciamento oficial e definitivo aconteceu ao longo do
milênio seguinte. No Ocidente, foi só no século 16 que católicos e protestantes
cristalizaram seus cânones ligeiramente diferentes, com alguns livros a mais ou
a menos no Antigo Testamento, como veremos a seguir.
Mito 2: ao longo dos séculos, a Bíblia foi
constantemente manipulada e alterada. Não fazemos a menor ideia de quais eram
os textos originais
Esse mito é mais complicado porque contém alguns
elementos de verdade. Vamos examinar a questão, pensando primeiro no cânone
judaico (o nosso Antigo Testamento) e depois no cânone cristão.
Primeiro, o fato é que a tradição de manuscritos do
Antigo Testamento é muito antiga e bastante bem documentada. Os famosos
Manuscritos do Mar Morto, achados na Cisjordânia nos anos 1940 e 1950, remontam
até o século 2º a.C., em alguns casos, e vão até o século 1º da Era Cristã, ou
seja, têm cerca de 2.000 anos de idade. A maior parte desses manuscritos
corresponde a trechos de quase todos os livros da Bíblia hebraica, ou Tanakh,
como também é conhecida — só não há na coleção trechos do livro de Ester.
Tem variação quando comparamos os textos bíblicos dos
Manuscritos do Mar Morto com os textos hebraicos preservados pela comunidade
judaica, os chamados textos massoréticos, que datam do século 9º d.C.? Tem
variação sim, e considerável – trechinhos a mais ou a menos, trocas de letras,
confusões de significado etc. Isso é especialmente verdade em textos de
natureza poética, que possuem vocabulário mais complexo e de difícil
interpretação. Mas há relativamente pouca coisa que tenha algum significado
teológico ou histórico muito importante nessa variação. Algumas versões dos
Salmos dos Manuscritos do Mar Morto, por exemplo, parecem dar a entender a
existência de outros deuses além do Deus bíblico, Yahweh (nome geralmente
traduzido como “o Senhor”). Mas essa inferência também pode ser feita com base
nos manuscritos mais conhecidos da Bíblia, por exemplo. Não é nada propriamente
bombástico.
Já falamos dos textos do mar Morto e dos massoréticos,
ambos em hebraico, que parecem concordar em muita coisa, ainda que não em tudo.
Há ainda duas outras tradições importantes de textos do Antigo Testamento. A
mais “estranha”, do nosso ponto de vista, é a dos samaritanos, o grupo de
adoradores do Deus bíblico que vive ao norte de Jerusalém e era considerado
herético pelos judeus. Os samaritanos possuem sua própria Torá, ou seja, o
conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco (Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronômio). De novo, no geral, os textos batem, embora a
Torá samaritana “puxe a brasa para a sardinha” de seus copistas, dizendo por
exemplo que o local correto de adoração a Deus é o monte Gerizim, na atual
Cisjordânia, e não Jerusalém, como defendem os judeus. Mas não passa muito
disso — não é que a Torá deles diga “chutai a canela do seu pai e da sua mãe”
em vez de “honrai pai e mãe”. Mais uma vez, trata-se de uma versão em hebraico.
Finalmente, há ainda a antiga tradução da Bíblia
hebraica para o grego, a chamada Septuaginta, ou versão dos Setenta (assim
chamada porque teria sido feita por setenta sábios judeus que viviam no Egito
por volta do ano 200 a.C., segundo a tradição). De novo: há variantes
significativas entre o texto da Septuaginta e os textos em hebraico? Tem
bastante, de fato, o que indica que provavelmente os tradutores usaram um
texto-base diferente da versão massorética. Mas, outra vez, é preciso ressaltar
que essas diferenças não costumam ser radicais do ponto de vista semântico e
teológico. Um dos problemas importantes da Septuaginta talvez seja a passagem
na qual a palavra hebraica “almah”, que designa uma jovem do sexo feminino que
ainda não teve filhos, foi traduzida como “parthenos”, que normalmente (mas nem
sempre) significa “virgem” em grego. Foi essa passagem, do livro do profeta
Isaías, que serviu de base para a ideia de que a concepção virginal de Maria
nos Evangelhos cumpre a profecia de Isaías.
Esse detalhe é teologicamente importante, sem dúvida,
mas é um dos poucos exemplos de diferenças de peso. Resumindo: no caso do
Antigo Testamento, apesar das muitas variantes, estamos falando de uma tradição
de manuscritos que manteve considerável estabilidade ao longo de muitos
séculos. Não há sinal de nenhuma conspiração para manipular em larga escala o
conteúdo desses textos. No geral, os antigos judeus (e samaritanos) parecem ter
respeitado o conteúdo tradicional de tais textos.
E no caso do Novo Testamento? Bem, os mais antigos
fragmentos em grego desses livros que chegaram até nós são do começo do século
2º d.C. — cerca de um século, portanto, depois da morte de Jesus. Mas textos
maiores só aparecem no século 3º d.C. O consenso entre os historiadores, no
entanto, é que a maior parte do Novo Testamento foi escrita bem antes, entre 65
d.C. e 100 d.C. Mais uma vez, existem variantes? Sim, centenas de milhares, mas
a grande maioria delas não tem grande significado. Num post anterior já falei
de uma das mais importantes, a do “final alternativo” do Evangelho
de Marcos. Outros trechos que podem ter sido alterados por
causa de disputas teológicas envolvem interpretações adocionistas, ou seja, a
ideia de que Jesus teria sido apenas adotado por Deus, e não seria seu Filho
desde sempre. No geral, porém, vale o mesmo que dizemos sobre o Antigo
Testamento: quando comparamos todos os manuscritos que chegaram até nós, não há
sinais de manipulações de larga escala dos textos.
O importante aqui, eu acho, é pensar no contexto e na
maneira como funcionavam as tradições religiosas na Antiguidade. Os textos que
acabaram compondo o cânone da Bíblia já circulavam e eram venerados havia
séculos quando o cristianismo se consolidou. Eram lidos, comentados, estudados
e muito bem conhecidos. Alterá-los totalmente provocaria muitas brigas e não
serviria a grandes propósitos. O mais lógico era aceitá-los mais ou menos como
eram e investir em interpretações que casassem bem com a teologia cristã
nascente.
Mito 3: os Manuscritos do Mar Morto contêm evangelhos apócrifos que
revelam verdades chocantes sobre Jesus
Esse mito é fácil de derrubar, em contraposição ao
anterior. Não há NENHUM texto cristão em meio a esses manuscritos, gente. A
única relevância deles para o estudo do Jesus histórico é o fato de que eles
nos ajudam a entender como era o judaísmo na época em que Cristo viveu. Fora
isso, nada.
Mito 4: os evangelhos apócrifos são uma fonte mais
confiável sobre a figura histórica de Jesus do que os que foram incluídos na
Bíblia.
Outro mito que vai ao chão com relativa facilidade.
Hoje, quase todos os historiadores concordam que é preciso ler com muito
cuidado os Evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João — se a ideia é
buscar informações historicamente confiáveis, porque o interesse dos
evangelistas era fazer teologia, e não história no sentido moderno. Mas, e esse
é um grande mas, a maioria dos historiadores também concorda que, se esses
textos têm problemas do ponto de vista histórico, os evangelhos apócrifos, ou
seja, não incluídos na Bíblia, são ainda mais problemáticos, em geral.
Isso porque tais textos foram, em geral, escritos bem
depois dos Evangelhos canônicos e estão cheios de material lendário e
especulações teológicas ainda mais ousadas do que os textos presentes na
Bíblia. São quase “fan-fic” — aqueles textos escritos por fãs de um livro ou de
um filme usando personagens criados por outra pessoa em suas próprias
histórias.
Há uma possível exceção importante nesse caso, porém.
Trata-se do Evangelho de Tomé, encontrado no Egito e feito quase que só de
frases impactantes de Jesus, ou de parábolas contadas por ele. Alguns
estudiosos importantes acreditam que Tomé preserva algumas versões das falas de
Jesus que se aproximam mais do que ele teria realmente falado em vida. Mas
muita gente discorda deles.
Mito 5: as Bíblias católicas e ortodoxas incluem
textos apócrifos que não fazem parte do cânone “correto” do Antigo
Testamento
Esse é outro mito com nuances, como o mito 2. De fato,
o que a Bíblia das igrejas protestantes inclui em seu Antigo Testamento é um
conjunto de livros exclusivamente traduzidos do hebraico para as línguas
modernas. São os mesmos livros incluídos pelos judeus atuais em seu Tanakh
desde mais ou menos o ano 100 d.C. As Bíblias católicas e ortodoxas incluem
ainda outros livros, como Judite, Sabedoria e Eclesiástico, que foram
traduzidos do grego e a respeito dos quais se acreditava que tinham sido
escritos originalmente em grego e/ou nunca teriam feito parte do cânone de
qualquer grupo judaico.
Acontece, porém, que na época de Jesus o cânone
judaico ainda estava “semiaberto”, e ao menos alguns grupos de judeus parecem,
sim, ter considerado que tais livros eram canônicos. Trechos do Eclesiástico,
por exemplo, foram achados entre os Manuscritos do Mar Morto, e em hebraico. A
mesma coisa vale para o livro de Tobias – trechos em hebraico e aramaico também
constam da “coleção” do mar Morto.
Isso significa que esses livros “devem” fazer parte do
cânone? Depende. É claro que, no fundo, essa é uma discussão cultural e
teológica. Mas o que claramente não funciona muito é dizer que o judaísmo nunca
aceitou esses livros como parte das Escrituras — em alguns casos, essa
informação parece não proceder.
Ah, e pros leitores que às vezes pedem minhas fontes,
alguns livros ótimos para entender melhor os temas a seguir:
– Série “Um Judeu Marginal”, de John P. Meier, editora
Imago;
– “The New Testament: A
Historical Introduction to the Early Christian Writings”, de Bart D. Ehrman,
Oxford University Press;
– “Uma História Cultural de Israel”, de Júlio Paulo
Tavares Zabatiero, editora Paulus.
E dois excelentes cursos gratuitos online.
Sobre Antigo Testamento:
http://oyc.yale.edu/religious-studies/rlst-145
E sobre Novo Testamento:
http://oyc.yale.edu/religious-studies/rlst-152
Ambas da Universidade Yale, nos EUA.
Tags: Apócrifo, Antigo Testamento, Bíblia, História, Israel, Judeu,
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